Viagens

Barricas. Pela floresta francesa à procura da melhor expressão para um vinho

Berthomieu Ermitage

À medida que entramos na floresta, a perspetiva altera-se e a dimensão dos carvalhos torna-se cada vez mais impressionante. As árvores maiores cravam-se terra dentro numa base que dois homens não podem abraçar, têm perto de 200 anos e repetem-se horizonte fora numa imponência que define a própria floresta. Estamos em Nevers, centro de França, onde se encontram 8 mil hectares desta riqueza extraordinária e destas árvores que, nos seus melhores exemplares, garantem aquilo que aqui nos trouxe: as barricas de carvalho onde envelhecemos os nossos vinhos.

 

Berthomieu Ermitage

 

Guardar e fazer evoluir um vinho em madeira é coisa ancestral e comum, mas aqui há uns anos, quando o mestre Anselmo Mendes iniciava o seu processo de experimentação procurando novas soluções para a fermentação e estágio dos seus vinhos, a questão ganhou uma nova complexidade. Quando comecei a trabalhar com o mestre fui desde logo um privilegiado, aprendi muito, e entre tantas experiências fantásticas vivi também a descoberta destas madeiras que, hoje, nos garantem aquilo que mais procuramos, que é sempre a autenticidade e o equilíbrio dos vinhos.

 

Berthomieu Ermitage

 

Pois bem, o Anselmo Mendes tinha ouvido falar de umas novas possibilidades com as barricas das tanoarias Berthomieu e Ermitage, provenientes de França e fabricadas dentro do Charlois Groupe, sediado aqui mesmo perto de Nevers. Estas tanoarias ofereciam a possibilidade de escolha de barricas que, entre outras opções, nos permitiam variar não apenas nas dimensões ou tostas já conhecidas, mas igualmente fazer escolhas ao nível da porosidade da madeira, ou dos tipos de estágio da mesma – sim, porque estas madeiras também estagiam ao ar livre, à chuva, à neve e ao sol, em parques virgens de poluição, no fundo para que sejam lixiviadas, sequem e percam taninos.

 

Assim, com o Anselmo, a partir de 2004, lançámos um estudo que acabou por responder a uma questão muito simples: quais são as madeiras que melhor ajudam a expressar a autenticidade e a qualidade de um vinho? Então testámos sucessivamente colheitas de Alvarinho, Arinto, Alicante Bouschet e Touriga Nacional em barricas destas marcas Berthomieu e Ermitage, bem como em barricas de mais seis tanoarias. Ao longo dos estágios fizemos provas e retirámos fichas técnicas, analisámos intensidade da madeira, carga aromática, estrutura, complexidade, tudo! Juntámos amigos e especialistas à discussão e, no final, chegámos à conclusão de quais eram as barricas que deveríamos aplicar a cada vinho. No fim não só acabaríamos por escolher preferencialmente as barricas Berthomieu e Ermitage, mas ficaríamos também a saber que, dentro destas marcas, queríamos uma madeira de uma determinada floresta para um determinado tipo de vinho. No fundo estávamos a trabalhar com um conceito novo para nós: o de barricas de terroir.

 

 

Veja-se então o exemplo do terroir da floresta específica onde nos encontramos em Nevers, a floresta de Bertranges. Estes carvalhos crescem em colinas suaves, de solo rico e húmido. As árvores são altas e retas, e madeira é de um grão regular, mais apertado. Em contacto com o vinho, esta madeira oferece menos estrutura, contribuindo para preservar a frescura natural. É a madeira que o Anselmo Mendes utiliza, por exemplo, na fermentação do seu mítico Parcela Única. É a madeira que escolhemos também, por exemplo, para o estágio do AdegaMãe Terroir, o topo de gama da AdegaMãe.

 

Berthomieu Ermitage

 

Os produtores franceses têm uma interpretação curiosa disto das madeiras. Muitos deles gostam de fazer segredo do tipo de carvalho que usam nos seus vinhos. É segredo porque de certa forma é a alma do negócio. E compreende-se, claro. Usa barricas de carvalho francês? De que dimensão? Com que tipo de tosta? E a madeira era de que floresta? Eram barricas novas ou usadas? Essa madeira é mais ou menos porosa? E quantos meses estagiou essa madeira? As possibilidades são quase infinitas. Baralhem isto as vezes que quiserem e, na mesma casta, surgem sempre vinhos diferentes. Não há uma escolha mais ou menos acertada, o que há é a descoberta do que nos leva ao perfil de vinho desejado. E isso resulta da experiência de cada um.

 

Já que demorei cinco parágrafos para explicar como vim parar ao meio da floresta, convém também explicar como é que um carvalho se transforma numa barrica que vai parar a uma adega. Enfim, é preciso tempo. Podem passar 200 anos entre o momento em que um carvalho germina e o dia em que temos a oportunidade provar um vinho estagiado na sua madeira. Um carvalho só é abatido quando atinge idade adulta, e isso pode ser já perto dos 200 anos. As árvores para abate são identificadas pela ONF – Office National des Forêts, organismo governamental francês que tutela a exploração florestal e que gere os 11 milhões de hectares de florestas públicas do país, assegurando a sua renovação permanente.

 

 

Depois de identificadas as árvores, cabe às tanoarias avaliar o potencial das mesmas, isto é, confirmar se reúnem a qualidade necessária para a transformação em barricas, avançando depois para a compra das mesmas em leilão – uma oferta pode rondar os 2 mil euros. Após o abate, os troncos dos carvalhos são cortados numa dimensão específica, que assegura já o tamanho necessário para a futura construção das barricas. Nas “merrandiers”, estes troncos são lascados verticalmente (a lasca é mais natural, respeita os veios da madeira e assegura estanquicidade futura) e transformados nas chamadas aduelas, as ripas ou travessas que, numa primeira fase, irão estagiar para os tais parques exteriores, expostas ao clima. Só depois do estágio completo seguem para a tanoaria, onde se dá todo o espetáculo manual da produção da barrica, interpretado por verdadeiros artesãos do processo. Uma visita às tanoarias vale por isso mesmo, pelo testemunho desta arte só ao alcance de especialistas.

 

 

No caso da Berthomieu e Ermitage, daqui as saem barricas para as principais regiões vitivinícolas do mundo, Portugal incluído. Mas sai muito mais do que isso. Sai também o exemplo da exploração e sustentabilidade desse recurso natural que é a floresta. Onde se gera riqueza desde há séculos, onde uma árvore abatida ilegalmente é caso de justiça, ou onde raramente há um incêndio.

 

 

Isso mesmo! Agora que aí vem o Verão, um exemplo!