Diário da Vindima (IV). Sim, a vindima perfeita ainda está por acontecer!
Esta é aquela fase do ano em que o enólogo desaparece para se tornar um tipo estranho, meio stressado, às vezes um bocado mal-disposto. Enfim, não levem a mal, que isto ataca todos os anos. Chama-se vindima, e deixa-nos assim numa espécie de concentração cega, que não nos deixa ver nada além de uvas, mostos, cubas e barricas. A verdade é que isto é muito mais divertido do que parece! E passa como uma vertigem. Este é o diário de uma semana na vindima, ente 5 regiões, 7 adegas e uns valentes Km na estrada. Depois dos textos de segunda, terça e quarta-feira, segue mais um diário da vindima:
Quinta-feira | 1368 Km – 1460 KM
AdegaMãe (Lisboa)
Nunca há uma vindima igual. E nunca há uma vindima em que tudo corra bem. É a máquina da vindima que se atrasa, é o reboque de uvas que rebenta um pneu na estrada, são as bombas que avariam na adega, é a eletricidade que falta, é a prensa avariada… É quinta-feira, estou de volta à AdegaMãe e o desengaçador está parado. Não funciona, as pás estão empenadas. A assistência já chegou, mas enquanto isso temos três reboques de uva à espera. Um deles já passou a noite à porta… A vindima perfeita ainda está por acontecer!
Deixo o stresse para a equipa. Como sempre, o Filipe – o adegueiro chefe da AdegaMãe – tem a coisa controlada, pelo que prefiro refugiar-me entre mostos e fermentações. Na AdegaMãe temos já um certo trabalho de experiência realizado. Esta é a nossa 10ª vindima, pelo que existe uma forte indicação de quais as castas e as parcelas com as que mais podemos contar. É como se tivéssemos uma espinha dorsal que garante a qualidade e consistência dos nossos principais vinhos. Interessa agora confirmar, nessa espinha dorsal, onde estão as melhores cubas e as melhores barricas, para tomar opções entre topos-de-gama e restantes vinhos.
Entretanto toca o telefone, é o Nuno Costa que liga dos Açores, dos Biscoitos. Tenho viagem marcada para a semana seguinte e o Nuno adianta-me o ponto de situação das fermentações. Bons aromas, diz ele. Daqui a uns dias estamos por lá a decidir o Verdelho que vai para barrica (para o topo de gama, Muros de Magma). Vamos também maquinar umas ideias que por aqui andam, nomeadamente a possibilidade de procurarmos uma aguardente para fazer nascer um licoroso de Verdelho. A ver…
Dou um salto para almoço à Quinta de Fez e ao restaurante do amigo Chico. É dia de coelho! E o que eu gosto de Coelho, especialmente este que me aparece no tacho de barro, a desossar como deve ser e com os sabores do estufado todos equilibradinhos, no ponto.
À tarde dou um salto às vinhas para provar uvas de umas parcelas que ainda nos faltam vindimar. E dou uma vista de olhos ao Semillion, que ficará mais tempo na vinha a aguardar pela famosa Botrytis cinerea. É o tal contrassenso agronómico… passamos o ano inteiro a combater fungos e outros agentes que tentam agredir as videiras e os cachos e agora, nesta fase final, queremos é que um dos maiores inimigos apareça. É a podridão nobre, não a podridão cinzenta, nefasta para a produção. O que queremos é a famosa podridão que ajuda a fazer alguns dos vinhos mais enigmáticos do mundo, como os Sauternes e os Tokaj.
Ao final do dia ainda passo pelo escritório. Dedico-me ao quadro de controlo para “jogar” um pouco de Sudoku com o Filipe. Passamos sempre uns bons minutos a estudar as opções que temos para arrumar os vinhos que entretanto vão saindo das cubas de fermentação. Apesar de termos comprado cubas novas há uns anos, o espaço para guardar coisas especiais nunca é demais. Por isso, coragem, há que tomar decisões!!!