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Gomez Cruzado. David, um romântico na clássica Rioja

Gomez Cruzado

Haro, Rioja. Estamos no “Barrio de la Estacion” e cá está a mítica estação de comboios. Em torno dela, as adegas desta Rioja tradicional, de vinhos clássicos, naquele perfil imutável que fez o nome da região (e uma das mais sagradas identidades no mundo do vinho). Mas aqui em Haro, coração desta emblemática Rioja, também há mais do que esse lado sagrado, em particular numa casa muito especial, a Gomez Cruzado, onde o meu amigo e enólogo David nos espera numa manhã fria, para mais uma descoberta das suas colheitas.

 

Gomez Cruzado

 

O David é um tipo interessante, muito tranquilo, minucioso na forma como fala. É um romântico e o seu entusiasmo chega com os pormenores. Entramos na bodega e no seu mundo de experimentações e começamos a viajar o processo de cada vinho, as particularidades de cada encosta, clima ou casta… Quando é assim, deixem-nos falar que, para nós, enólogos, cada vinho é uma viagem, muito valorizada. Ainda mais aqui, porque é como se estes vinhos, feitos ao pormenor e originários de viticultura sustentável, tivessem trazido novas Riojas a esta Rioja. E isso é extraordinário.

 

Gomez Cruzado

 

Para o David, tudo começa na vinha e na identificação de umas parcelas muito especiais, em zonas distintas desta região, que lhe permitem desde logo procurar interpretações improváveis de castas por demais conhecidas. Estamos numa região de tintos clássicos, Tempranillos concentrados e com longos estágios na madeira, mas aqui na Gomez Cruzado apetece-me desde logo começar por falar de um branco, feito de Viura e Tempranillo Branco (uma mutação “riojiana”), nascido de vinhas velhas e com uma fermentação dividida entre barricas de carvalho francês e… um ovo de cimento – estamos numa casa onde o lado artesanal e tecnológico andam de mãos dadas, sempre à procura da expressão mais pura de cada vinho.

 

Gomez Cruzado

 

Este branco de que falo chama-se Montes Obarenes, entra numa espécie de coleção especial do produtor, designada “Seleccion Terroir”, e o nome diz tudo – as uvas vêm de uma pequena vinha na localidade de Montes Obarenes, onde a vindima do Tempranillo Branco se faz em diversas fazes de maturação. Depois, na adega, o vinho é conduzido para exprimir todo o seu carácter e mineralidade. No fim é um branco enorme, volumoso mas fresco, surpreendente! – “Para quê trazer Chardonnay para uma região com uma identidade tão própria quando conseguimos alcançar um vinho tão distinto como este”, pergunta o David.

 

Gomez Cruzado

 

Avançamos para os tintos. A minha grande surpresa chama-se Pancrudo. É um tinto enigmático e assim que entra no copo percebemos que estamos perante algo diferente. Cor aberta, perfume intenso, boca explosiva. Aqui a palavra chave é elegância. Tudo no ponto certo. É um Garnacha, de vinhas velhas, claro, conduzidas em taça à antiga, sem armação. Diria que é uma espécie de Pinot da Rioja. Vem de uma zona mais chuvosa e fresca, perto da Serra Cantábria onde o Garnacha foi testado em três tipos de solo e mostrou resultados surpreendentes. Não atinge grande volume (no máximo 13.5), mas é de uma elegância incrível, muito mais surpreendente porque estamos na Rioja.

 

 

Claro que o David também tem os seus clássicos, embora sempre com um “twist” que os torna ainda mais curiosos. Veja-se o seu Honorable, um grande tinto, Tempranillo em todo o seu esplendor, mas muito limpo, cheio de classe, seguramente porque o David quase só utiliza carvalho francês e, dentro deste perfil mais tradicional, consegue sempre encontrar outra pureza e elegância – pode parecer heresia mas aqui em Haro, no coração da Rioja, nem todos os tintos têm que estar cheios de carvalho americano e acabar com taninos espigados.

 

Gomez Cruzado

 

Estes vinhos delicados, finos, são o resultado do fantástico trabalho de experimentação do David. Ele pode parecer uma espécie de Dom Quixote num cenário que não é o dele, eu acho antes que é um romântico do terroir, apaixonado pela autenticidade que lhe chega da vinha, ou uma lufada de ar fresco numa Rioja que pode também ter novas interpretações.

Sim, há regiões sagradas, mas isso não significa que não se possa inovar. A casa Gomez Cruzado tem mais de 100 anos de história, a adega, os murais pintados para rua, ou a assinatura em cada garrafa, transpiram história por todo o lado, mas toda a herança e reputação estão longe de significar que os vinhos são imutáveis. Pelo contrário, também eles evoluem dentro da sua própria identidade e nos surpreendem a cada dia. Parabéns David. Que vinhos fantásticos!