Remirez de Ganuza. A pureza de um vinho 100 pontos Parker
A torre da igreja impõe-se lá no alto e destaca Samaniego bem de longe. Vamos à procura da adega Remirez de Ganuza e é mesmo no centro, ao lado da Igreja, que encontramos esta bodega, dividida entre casas de pedra antiga. É como se a adega fosse uma pequena parte da localidade. De um lado recebem-se e estabilizam-se as uvas, do outro segue o processo até às cubas e às barricas; à direita a loja e por baixo, quais catacumbas, garrafas em estágio por anos e mais anos, que aqui tudo se faz sem pressa. Tudo orientado para uma pequena praça, vigiada pela torre da tal igreja.
Jesus é o enólogo e o anfitrião. Diz que não são precisos milagres, que é só respeitar o que chega da vinha. É ele que tem às costas os vinhos de uma casa fundada apenas em 1989, mas entretanto já de nome mítico, graças ao trabalho do fundador, Fernando Remirez de Ganuza, um negociador de uvas nesta Rioja Alavessa que sempre teve como máxima “ser fiel” à… uva. Decidiu começar a fazer o seu próprio vinho defendendo uma intervenção mínima, como se qualquer detalhe ou factor imprevisto pudesse contaminar o que é mais importante: a qualidade do bago. E foi assim que o seu Grande Reserva de 2004, com o mesmo nome Remirez de Ganuza, conquistou 100 pontos Parker, iniciando esta espécie de mito.
Jesus guia-nos e mostra-nos como se faz o vinho. As vinhas têm em média 50 anos, mas valorizam-se as mais velhas e as de menor produção. Claro que as parcelas estão por demais estudadas e identificadas, entre os cerca de 80 hectares disponíveis. Depois, o trabalho decisivo começa logo na selecção de uvas feita em plena colheita. À chegada à adega, a correria da vindima é interrompida para que os bagos sofram um choque térmico e baixem a temperatura – todas as caixas de 12 Kgs passam pela câmara frigorífica durante 24 horas e só depois dessa estabilização se arranca para a seleção final. Aí, não passa uma uva má. Não passa uma uva verde. Enquanto nos descreve o processo e nos apresenta os tapetes onde se faz este trabalho, Jesus lembra ainda outro pormenor: os cachos são cortados e para o vinho mais nobre dispensa-se a parte basal (a parte bicuda), porque essas uvas nunca têm o mesmo nível de maturação.
Já vimos que o milagre está somente na seleção do que é melhor. Não interessa quantos quilos se sacrificam. Mas não ficamos por aqui. Defende-se a integridade do bago até final e por isso evita-se a prensa. O esmagamento dos bagos e o vinho propriamente dito faz-se de forma natural nas cubas de fermentação, por entre a remontagem. As cubas têm um desenho feito propositadamente para este produtor, de modo a que permitam isolar as grainhas no fundo e seja possível retirá-las. Utilizam-se ainda películas de brancos para estabilizar o vinho e, finalmente, chega o estágio na madeira, sempre em barricas novas que, no início, para evitar qualquer contaminação, ficam isoladas das que já estão em estágio desde anos anteriores.
Devo dizer que nunca estive numa zona de produção com este cheiro, com esta higienização. No final da visita, já depois de atravessarmos toda uma adega onde não há um grão de pó, onde parece que estamos no laboratório mais desinfectado do Mundo, percebemos o que Jesus quer verdadeiramente dizer quando vai afirmando que “procura vinhos puros, vinhos limpos”. A expressão volta a sair-lhe depois, à mesa, quando nos sentamos para a prova. “Ora aí está um vinho limpo”. A pureza está em todo o processo e chega ao vinho, claro. O resto é o tempo. Para se ter uma ideia, o 2004 que conquistou 100 pontos Parker passou 53 meses em estágio. Cinquenta-e-três-meses!
Num jantar com produtores da zona, em que partilhámos vinhos e histórias, Jesus aparece com uma garrafa do seu Gran Reserva 2005. Passam bons vinhos na mesa, mas o seu é outra música, é música clássica que silencia os restantes. É o Tempranillo tornado veludo, taninos domados, nada que possa incomodar. Nunca ninguém vai encontrar ali o toque vegetal de uma folha ou de uma grainha, porque não há lá nada disso, porque o vinho é puro, é irrepreensível.
Enfim, como diz o Jesus, aí está um vinho limpo.
ps: e os brancos que o Jesus está a fazer também!? Elegantes, cremosos e complexos. Riojas de madeira no ponto, e excelente acidez, a prometerem surpreender ainda com mais com anos e anos de garrafa. Meu deus… que surpresa!