Vinho

Vida de enólogo? Não é só copos… Mas não deixes para amanhã o que podes fazer hoje!

Diogo Lopes

 

Provas de vinhos, jantares vínicos, apresentações a clientes, a outros parceiros comerciais, ou às vezes a jornalistas. Feiras e outros eventos, enfim, mais sociais, mais discretos ou cheios de glamour – ahhhh, como o mundo do vinho adora ver-se! Ou aqueles almoços com amigos, ou mesmo com a família ou com outros enólogos, em casa ou nas adegas, porque gostamos sempre de partilhar e de conhecer mais… E depois, um dia, a habitual pergunta atrevida: então o teu trabalho é isso, beber copos?

 

Ora bem, vamos lá enfrentar a questão. A vida de um enólogo não é só copos e jantaradas! Estou a dizê-lo com um sorriso, claro, porque esta vida também está sempre a trazer-nos a oportunidade para as mais entusiasmantes experiências à mesa, mas acreditem, meus caros, este rapaz trabalha. Pode é fazê-lo de duas formas: furtar-se a quase tudo, armar-se um pouco e dizer que já só vai aqui ou ali, que provou isto e comeu aquilo, ou procurar aproveitar o que de melhor e mais genuíno esta vida abençoada proporciona, mesmo nos dias mais atarefados…

 

peixe

 

Já está vista qual é a minha preferência. O que seria isto do vinho se não fosse para partilhar mesas e gente boa?  Portanto, aos meus ilustres amigos que passam a vida a dizer que a minha vida é só copos, eu dedico-lhes este texto com a rotina de uma semana trabalho, andes da loucura que agora começa com a vindima, em que surgem sempre uns belos almoços, às vezes daqueles mais rápidos, mas sempre bons! E já agora ficam as dicas. Tem que ser, porque “quem não é para comer, também não é para trabalhar”, certo?

 

Segunda-feira

O primeiro dia da semana é quase sempre em Torres Vedras, na AdegaMãe, o projeto onde sou enólogo há mais tempo, desde 2010. Saio de Lisboa e quando chego é tempo de enfiar-me no laboratório, no meio de amostras e de copos, por exemplo, para desenhar o lote do novo Dory Tinto, um dos vinhos mais representativos da casa. Concentração máxima, portanto!

 

Num projecto como a AdegaMãe, o ritmo da produção é grande e praticamente todas as semanas temos engarrafamento. Ainda de manhã, por isso, há que preparar vinhos e fazer o planeamento semanal do enchimento. Pela tarde, segue-se mais trabalho de adega, controlo de qualidade, análises físico-químicas, etc. Tento ainda abrir o email e despachar muitos dos contactos pendentes, antes de voltar a Lisboa.

 

O almoço: O mais comum é almoçar na AdegaMãe, porque temos quase sempre clientes ou parceiros de visita. Se assim for, comemos bacalhau, claro! Desde logo uns pastéis de bacalhau como só existem na AdegaMãe, 70% ou 80% de bacalhau, pouca batata, crocantes, perfeitos, seguramente o melhor pastel de bacalhau do Mundo! Seguramente! Depois, uns lombos ou uns cachaços de bacalhau assados, com aquelas lascas bem gordas e macias. Harmonizamos, claro, com alguns vinhos que queremos mostrar às nossas visitas. Jantar? Em casa, com a família.

 

 

Terça-feira

É dia de acordar cedo e rumar a sul, ao Alentejo. O trabalho começa na Herdade Grande, o projeto da família Lança, que há quase 100 anos se instalou naquela fantástica propriedade da Vidigueira. Nesta altura do ano, estamos a definir o acabamento de alguns vinhos, pelo que passo a manhã na adega com o meu parceiro de enologia, o Pedro Garcia. Existe também controlo físico-químico para fazer e a manhã esgota-se num instante. À tarde continua a jornada alentejana: arranco em direção à adega do projecto Couteiro-Mor, onde o trabalho nesta altura é essencialmente o mesmo.

 

O almoço? Meus amigos, em dia de Vidigueira tornou-se quase um ritual ir ao País das Uvas, um dos meus preferidos santuários alentejanos, situado em Vila de Frades. Ambiente bem rústico e genuíno, sem grandes pretensões, perfeito para quem chega de fora ou quem por ali trabalha. Mas o que é mesmo importante são aquelas silarcas com ovos, o cozido de grão, o feijão com cardos, ou as carnes de alguidar e migas. Ainda por cima tudo enquadrado pelas talhas, que nos levam para os tempos antigos da produção de vinho – e se isto não é trabalho, não sei o que é!

 

Quarta-feira

É dia de rolar para norte, para o Douro. A caminho passo pela AdegaMãe. Observo a evolução dos lotes desenhados, mas a manhã está reservada para o grande Amândio Cruz, consultor responsável pela viticultura, para fazer um ponto de situação sobre as vinhas, o estado fitossanitário das mesmas e para ficarmos com uma perspetiva de qualidade do que aí vem. Depois do almoço, enfio-me no carro e guio durante quatro horas em direcção a Tabuaço. O lado positivo destas viagens? A quantidade de telefonemas que posso fazer e que me permitem resolver ao máximo todos as conversas e assuntos pendentes.

 

O almoço? Fixem este nome, Quinta de Fez, no Turcifal. É, muito provavelmente, o melhor restaurante de Torres Vedras e, imaginem só, fica mesmo perto da AdegaMãe. O proprietário é o amigo “Chico”, um cozinheiro simplesmente extraordinário que consegue sempre surpreender-nos com a qualidade e simplicidade dos seus pratos, desde um bacalhau à brás até a uma açorda de ovas. É fantástico, e sempre rápido, sobretudo se conseguirmos cortar o entusiasmo – problema, porque a garrafeira do Chico tem sempre uns vinhos interessantes!

 

Quinta de Fez

 

E o jantar?  O que não se podia beber no Chico, bebe-se mais tarde, após quatro horas de estrada e a chegada ao Douro. Onde? No Castas e Pratos, no Peso da Régua, um clássico que não falha! Encontro-me com a equipa da Kranemann Wine Estates, os meus amigos Susete e Vasco, e preparamos o dia seguinte na Quinta do Convento enquanto partilhamos um petisco (repolgas, alheira de caça, pica pau de novilho…) e uma bela garrafa (hoje é dia de Quanta Terra, um dos meus brancos preferidos na região). Há melhor ambiente para adiantar conversa de trabalho?

 

castas e pratos

 

Quinta-feira

Dia de acordar cedo, para aproveitar o tempo ao máximo. Começo pelas vinhas, com a Susete, que além de amiga é parceira de enologia neste projeto, onde está em permanência. Percorremos aqueles fantásticos patamares, observamos a evolução das videiras – a produção promete! – e levamos aquela excelente injeção da paisagem e a biodiversidade que nos circunda. Depois passamos para adega, onde são várias as provas, para se apurar a evolução dos muitos vinhos em estágio, os mais novos e os mais antigos, incluindo os Porto. É preciso tomar decisões, saber o que segue para os tonéis, para as madeiras, para o inox, etc… Depois de almoço, reunião com o enorme Vasco, mais vocacionada para a parte comercial, articulando estratégias, engarrafamentos, etc. Os nossos primeiros vinhos estão finalmente engarrafados e a chegar ao mercado, pelo que há muito por decidir.

 

 

O almoço? Muitas vezes ficamos lá por cima, em Tabuaço, mas se houver tempo vale a pena um saltinho à Toca da Raposa, essa catedral do cabrito, em Ervedosa do Douro. Enfim, do melhor que se pode encontrar e uma excelente homenagem à cozinha regional e aos produtos locais.

 

cogumelos

 

O jantar? À tarde segue-se a viagem de volta a Lisboa, que a distância se encarrega de levar noite dentro. A ideia é chegar a horas decentes, mas se apetecer comer qualquer coisa, que tal parar ali em Fátima, mesmo à saída da auto-estrada, e despachar a bela sandes de leitão do Mr. Leitão. Encomenda-se uma horinha antes e haverá de nos ser servida quentinha, em pão tão nobre como o bicho. Problema: ficamos sempre na dúvida se devemos comer só uma… Seja como for, a chegada a Lisboa fica sempre mais aconchegada!

 

Sexta-feira

De regresso à AdegaMãe, essencialmente para reuniões comerciais e contactos internacionais. Estamos a exportar cerca de 70% da nossa produção e muito do trabalho também passa por aí, contactos, agendamentos de reuniões lá fora, etc. Fica igualmente alinhavado o planeamento da semana seguinte.

 

O almoço? Hoje temos a visita de um jornalista, crítico de vinhos e gastronomia. Não há grandes invenções, queremos que tudo seja genuíno, pelo que estamos de regresso ao bacalhau, bacalhau cozido, na forma mais neutra de comprovar a sua qualidade e de o harmonizar com vinho (já agora, acham que é branco ou tinto? E qual a casta? Difícil…). A prova é mais demorada, mas há tempo para voltar ao escritório, abrir o computador e resolver mais uns assuntos antes do regresso a Lisboa, onde haverá um jantar descontraído com amigos para acabar a semana em grande.

 

Meus caros, trabalho é trabalho, às vezes com muita mesa pelo meio. Há que ter coragem. Não podemos é deixar para amanhã o que podemos fazer hoje!