Vinho de Talha. A magia dos Potes de Barro.
O vinho é sempre história. E uma boa história, claro, complementa um bom vinho. Ora, e há lá coisa com mais história do que os vinhos de Talha no Alentejo? Estes vinhos representam, realmente, um património incrível, um verdadeiro legado que nos foi deixado pelos romanos há 2000 anos. E que hoje se renova, ano após ano, graças à tradição que se recupera em cada vez mais adegas – entre as quais a da Herdade Grande, onde tenho o privilégio de viver um pouco desta história, junto do Eng. António Lança e da Mariana Lança, e de toda equipa!
As talhas (ou os Potes de Barro, como se chamam ali para a Vidigueira, bem perto da terra emblemática dos Vinhos de Talha que é Vila de Frades) voltaram a encher-se na Herdade Grande. Estavam paradas, a fazer decoração, há mais de 25 anos. São talhas centenárias, do tempo que se fazia o vinho para o consumo próprio e partilha com os amigos. E agora que estão recuperadas, recebem a cada vindima as uvas da nossa mais antiga e especial parcela de vinha branca (ou não estivéssemos na Vidigueira, icónica terra de brancos).
Para um enólogo, uma Talha é tudo menos algo previsível. Enfim, estamos perante um método que não vem nos livros, por isso, é procurar seguir as referências e a tradição, e ter a coragem de acreditar que no fim tudo corre bem. Na faculdade gastamos horas a estudar formas de proteger os mostos, de evitar oxidações precoces, mas, aqui, nada disso conta. Escolhemos uma boa talha, colocamos lá dentro as melhores uvas… e temos fé no processo!
A pesgagem das talhas…
Comecemos pelas Talhas. Primeiro há que pesgá-las. E o que é isso da Pesgagem? É um tratamento também ancestral realizado com o objetivo de impermeabilizar a talha. Feita de barro, e sendo porosa, a talha é assim barrada com uma camada de pez (uma mistura de resina de pinheiro, cera de abelhas e azeite) que vai prepará-la para receber as uvas. E que vai marcar o carácter tão genuíno destes vinhos (mas já lá vamos…).
Cada pesgador tem a sua técnica. As talhas da Herdade Grande são pesgadas na adega de uns amigos, em Vila Alva (mais uma pequena meca dos potes de barro). Tudo é uma experiência nova e enriquecedora, a fogueira, o cheiro do pez, as talhas ora boca para baixo para o lume, ora deitadas e untadas com aquela espécie de resina e finalmente preparadas a tempo da vindima.
E finalmente chega o dia…
Neste ano de 2021 enchemos as talhas ainda em Agosto. Basicamente a nossa intervenção resumiu-se à viticultura e à decisão do timing da vindima. É isso, pouco mais. Escolhemos uvas boas e sãs e limitamo-nos a separar o engaço, porque precisamos de um bom engaço, maduro, a servir de base da talha e de filtro futuro.
Depois entram as uvas e dá-se a fermentação espontânea, sem qualquer levedura senão aquela que chega da vinha! Em plena fermentação, faz-se uma espécie de pisa com uma vara, atirando para a base as massas que têm tendência a subir. Enfim, vai-se controlando a talha, porque por vezes pode haver surpresas (não era a primeira que rebentava); e monitorizam-se parâmetros da fermentação, apenas para confirmar que tudo está dentro expectável.
O tempo segue e é esperar que tudo corra bem, até ao Dia de São Martinho, quando se cumpre a tradição de ir à adega e provar o vinho, isto é, abrir as talhas (como aliás manda a regra, para quem quer ver o vinho certificado). Chegamos então ao momento solene em que se perfura a pequena rolha de cortiça e o vinho começa a jorrar para o alguidar de barro, onde enchemos um copo, e outro e outro, provando talha a talha, uma e outra vez…
Com as mesmas uvas e processo, é incrível perceber as diferenças entre cada talha, cada uma mostrando o seu caráter. Uma talha pesgada este ano mostra esse lado ainda mais resinoso, extremado, puro talha, quase provocador. Uma outra talha pesgada há mais tempo é toda ela elegância. Entre copos (e castanhas assadas, claro), as opiniões dividem-se nas adegas em que se mantém vivo o ritual. A prova é toda ela uma festa. Um brinde à tradição e uma celebração do trabalho da equipa! E a equipa da Herdade Grande, em particular, merece todo o reconhecimento pelos belos vinhos – também de talha! – que tem vinho a fazer!
Parabéns a todos! Para o ano há mais!